terça-feira, 1 de outubro de 2013

ALEXANDRE BRANDÃO

De enfiadinha

Dia desses, no Facebook, falei uma mentira. Disse que, desde que lera e relera no mesmo instante um livro de Nabokov (Machenka, Companhia das Letras), só agora, ao ler “O que deu pra fazer em matéria de história de amor” (Companhia das Letras), de Elvira Vigna, voltara a ter experiência similar. Na realidade, essa de dar duas leituras assim de enfiadinha havia me ocorrido um pouco antes com livros de dois amigos meus. Um do conterrâneo Alexandre Marino (Exília, Dobra Editorial) e o outro do também mineiro Sérgio Fantini (Novella, Jovens Escribas).
Foto de Alexandre Brandão.

O que leva um sujeito a ler duas vezes em seguida um mesmo livro? Ou encanto ou assombro. Encantado, é impossível abandonar o livro. Assombrado, é imperativo voltar a ele para, de fato, compreendê-lo ou decifrá-lo — e ser, enfim, devorado por ele.
A releitura de Nabokov esteve ligada à questão do assombro — li e reli, confesso, por não entendê-lo na primeira leitura. Se não estou enganado, já que busco na memória algo acontecido há muitos anos, não é um livro fácil. Do mesmo Nabokov, é melhor ler “Lolita” (Alfaguara Brasil).
Nos casos de Fantini e Vigna, a questão tem a ver com o encantamento, mas, como escritor, a releitura foi também um golpe baixo, quer dizer, tentei decifrar, na segunda visita, os truques dos nobres colegas. Fantini, por exemplo, é dono de um texto enxuto, mas de um enxuto comparável ao sujeito magro de nascença, daqueles (não sou eu, mas foi meu pai) que passam a vida sem saber o que é gordura. Assim, meu amigo de Belo Horizonte, ainda que trabalhe muito para ter o texto pronto e seco, não deixa vestígios de seu bisturi no que escreve. Seus contos estão de um jeito que parecem ter sido desde o nascimento. Assim especialmente nesse “Novella”, livro de narrativas curtas, que flertam com a poesia.
Já Vigna nos conta uma história que a própria personagem e narradora conhece, digamos, de ouvir falar. Isso não seria nada surpreendente se ela não se agarrasse àquela história como forma (quase) única de estruturar a própria vida. Ela relata a vida de seus sogros, se é que os pais de um parceiro com quem vive e deixa de viver com certa frequência podem ser chamados de sogros. Bem, ao narrar e confrontar-se com a história contada, a personagem (sem nome) vai fazendo o que dá em matéria de história de amor com seu homem, que talvez não seja filho do pai dele e que é pai, sem saber, do filho dela. Vale situar o período histórico da narrativa, pois, me parece, ele é fundamental: começa, no período da Segunda Guerra, com a migração de uma família judia, a do sogro, da Alemanha para o Brasil, passa pelo período da ditadura militar e desemboca nalgum momento mais recente, no qual, por exemplo, a AIDS já tinha dado a sua cara e feito suas primeiras vítimas. Seja como for, para quem associa literatura feminina a Clarice Lispector, um conselho: interne-se numa clínica e desintoxique-se antes de ler Vigna. O feminino são muitos, destaco e teclo sem motivo aparente o óbvio.
Resta meu xará, Alexandre Marino, dono de uma poesia que me encanta e me assombra. Para falar dele (ou da própria poesia), tenho de confessar uma idiossincrasia: nunca dou por terminada a leitura de um livro de poemas. Se me perguntam se já li um livro qualquer de poesia, mesmo que já o tenha lido, respondo que não, que não li, que estou lendo. Por que tamanha sandice? Ora, porque os livros de poesia são como a Bíblia ou o Alcorão, leitura para a vida inteira, portanto interminável. Se agora eu confesso que li e reli o Exília de enfiadinha estou apenas anunciando o início do embate. Voltarei ao livro, hoje ou amanhã, ou hoje e amanhã, para reencontrar “Os pássaros de Bagdá”, poema que diz que “ninguém pensou nos pássaros de Bagdá,/desafios canoros/que os ditadores ignoram”. Antes do poema estive entre os que não pensaram nos pássaros — nem nas baratas, nem nas árvores que velam os generais mortos em combate.

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