segunda-feira, 2 de maio de 2016

João Caetano Nascimento comenta "Lambe-lambe".

DA MINHA LEITURA DO LIVRO "LAMBE LAMBE" DE Sérgio Fantini

Um veterano fotógrafo, amigo meu, disse certa vez que a fotografia revela aquilo que a gente olha e não vê. Me lembrei da frase, à medida que avançava na leitura do livro “Lambe Lambe”, do escritor mineiro Sérgio Fantini. A ideia desse livro, segundo o autor, surgiu a partir das manifestações de 2013. Tudo começou com um movimento contrao aumento das tarifas de ônibus e metrô em São Paulo e, num rastilho de pólvora, explodiu em todo o país. Multidões ganharam as ruas, mostrando facetas interessantes e também inquietantes.

Fantini busca no livro ver e entender as muitas faces que se espalham na cidade, com o que elas trazem de dor, desespero, sofrimento e sonho. As histórias, ou fotografias, nuas e cruas desse cotidiano se passam em Belo Horizonte, mas poderiam estar situadas em qualquer uma de nossas cidades grandes ou médias. São cinquenta narrativas curtas, densas, duras.
Para compor esses retratos, Fantini se mostrou um experiente artesão da palavra. Essas curtas histórias não são fotografias naturalistas, ao contrário, através da linguagem trabalhada, o autor desnuda e descarna essa realidade, faz um raio x da nossa sociedade, marcada por um alto grau de violência, que, de tão presente em nosso dia-a-dia, nem sempre nos damos conta. 


Vemos a crueza de uma sociedade injusta, autoritária, preconceituosa, pronta a ignorar ou esmagar o mais frágil, sem piedade. No entanto, observamos também as diferentes formas, muitas delas desorganizadas, de resistência do humano em situações totalmente desagregadoras. Um exemplo disso, entre outros, é a narrativa “Ratos”, um choque, momento forte de um livro contundente.
Todas as histórias começam sempre por: “São esses..., São essas...”. E assim, aos poucos, temos diante de nós um mosaico das grandes cidades, com seus imigrantes, mendigos, cães, gatos e ratos, desempregados, garçons, barbeiros, carroceiros, favelados, jovens, velhos, velhas, jornalistas, motoristas. Gente que esbarramos nas ruas, esquinas, bares e becos, sem perceber. Mas o lambe lambe com sua lente arguta nos desafia a olhar e ver. E essa é uma lição dolorosa: encarar a realidade, com o que ela tem de horror e barbárie. 


O escritor não procura pairar acima do bem e do mal, como um ser supremo. Ele toma posição, tem lado. E creio está do lado certo da margem do rio. Fantini suja-se na poeira e na merda das ruas, põe as mãos nas feridas, sofre com o sofrimento humano. Sem, entretanto, cair no panfletário ou fazer proselitismo. É antes de tudo um artista. Mantém-se fiel ao compromisso com a palavra, coma literatura e com o sentido e a significação mais profunda da escrita.
Isso faz de “Lambe Lambe” um livro importante, original, forte e dolorido como um murro no estômago. Fere, desconcerta, inquieta, mas nos dá uma áspera, cortante, renitente e amarga esperança.


Cada narrativa é precedida por ilustrações de Guga Schultze que nos apresenta uma série de personagens ácidos, satíricos, complementando a contundência das histórias.
Por isso, recomendo: leiam com urgência o “Lambe Lambe”.

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