Carta ao
leitor
Caríssimo
(a),
agora
que terminou de ler o livro, permita-me compartilhar duas ou três ideias a
respeito de Sergio Fantini, um autor que, apegado a alguns inegociáveis
princípios éticos, insiste admiravelmente em trilhar caminhos cada vez mais
desprezados por seus contemporâneos.
Enquanto
todos os escritores e candidatos a escritor sonham assinalar o nome nos
catálogos das grandes editoras, acreditando iludidos que isso lhes trará
prestígio e visibilidade, Fantini sempre optou por lançar seus títulos por
pequenas casas independentes, como a Jovens Escribas, ou até mesmo por selos de
fantasia de edições inexistentes. Mas, ao contrário de boa parte de seus
colegas que, após falhar ao tentar serem aceitos pelo mercado editorial, acabam
se autopublicando no afã quase exclusivo de alimentar pequenas vaidades,
Fantini mantém-se à margem visando apenas garantir a sua total liberdade de
criação.
Liberdade de criação significa para ele
não se dobrar aos ditames do momento, mas deixar-se guiar pela necessidade
vital de propor reflexões sobre seu tempo. Nesse sentido, remando contra as
ondas que trazem à praia centenas de depoimentos pessoais enfeitados como
narrativas inventadas – a chamada autoficção –, Fantini
permanece fiel à realidade imediata, não mimetizando-a como um naturalista que
caça borboletas para catalogá-las e expô-las em quadros inanimados, mas como
artista que recolhe resíduos dos dias e os transforma em fragmentos de vida.
Pois, acima de tudo, Fantini sabe que é a linguagem que permite o salto
transcendental que configura a verdadeira literatura.
O escritor Sergio Fantini nasceu no
final da década de 1970 vendendo de mão em mão seus livrinhos de poesia. Desde
meados da década de 1980, ele vem construindo sem alarde e sem pressa uma obra
ficcional, pequena mas devastadora, constituída de contos breves e longos (a
que outros chamam novela): Diz Xis, Materiaes, A ponto de explodir, Novella...
E agora este Lambe-lambe, espécie de
síntese e ultrapassagem de sua trajetória, tanto do ponto de vista formal
quanto de conteúdo.
Estruturalmente,
Fantini nos oferece aqui não contos breves ou longos, mas uma narrativa extensa
composta por peças curtas que podem ser lidas e entendidas como unidades autônomas,
mas que, tomadas no conjunto, ganham em densidade e compreensão. Tematicamente,
aprofunda o seu interesse pelos personagens invisíveis que povoam a sociedade,
iluminando os cantos obscuros por onde transitam. Se, até então, surgiam
aprisionados em suas histórias individuais, trágicas quase sempre, agora
irrompem anônimos como coadjuvantes de um destino comum: não mais rostos
identificáveis, mas corpos esvaziados de subjetividade.
Todos os capítulos iniciam-se com a frase “São
esses” ou “São essas”, para em seguida descrever uma infinidade de personagens
que enxameiam os espaços públicos, milhares, milhões de seres despossuídos de
tudo, preocupados apenas com a própria sobrevivência. A repetição continuada da
fórmula em textos de tamanho padrão, como o bate-estaca no terreno de um edifício
em construção, reencena a monotonia de existências sem biografia, de homens, mulheres
e crianças que caminham anônimos para uma morte inglória.
Fantini traça um retrato sem retoque da sociedade
contemporânea – não à toa seu narrador apresenta-se como
fotógrafo. Por meio de um olhar às vezes compassivo, às vezes irônico, às vezes
cínico, passeamos pelos meandros de um surpreendente zoológico, onde, desesperançados,
movidos unicamente pela necessidade de atender nossos instintos básicos, experimentamos
a estranha sensação de sermos ao mesmo tempo o sujeito observador e o objeto
observado.
Nesse lugar, situado na periferia do mundo, onde
imperam a hipocrisia e a mediocridade, perdemos a noção do humano: importa não o
que você é ou quer ser, mas o que você tem ou deseja ter. O embate entre
essência e aparência é explicitado, com ácido humor, nas vinhetas que pontuam a
narrativa: concisos três por quatro satíricos, que prefiguram por instantes uma
caricatura – um zoom na multidão para flagrar a
expressão aleatória, mas emblemática, de um obscuro personagem.
Com rara competência, Fantini nos descortina o
mundo cinza que recusamos ver, o panóptico em que estamos enjaulados. Por isso,
ocupa lugar ímpar no cenário da literatura brasileira contemporânea.
Luiz
Ruffato
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